Saturday, January 25, 2014

Resposta 5. Tremor

Existem respostas que pairam por aí.  Histórias análogas, verdadeiras e inventadas.
Esta aqui veio por recomendação de Giggia Barreto.

 
TREMOR
(extraído do livro Só, de Bianca Ramoneda)
             Eles não se viam há dois anos. Tinham vivido um grande amor e desde então não podiam mais se falar. O pacto de um silêncio mútuo havia se estabelecido entre eles como garantia de uma futura vida em paz. Ela havia saído do país. Ele havia arrumado um emprego em que ficava muito ocupado o tempo todo. Algumas vezes eram invadidos por flashes que fotografavam o passado, ofuscando momentaneamente a realidade, que nenhum dos dois atrevia-se a modificar. A vida de cada um se solidificara assim. E isso não era ruim. Nem bom. Era.
            Assim estavam os dois quando o telefone dele tocou:
            ELE: Alô.
            ELA: Oi.
            (pausa)
            ELE: Oi. (outra pausa) Que surpresa.
            ELA: Pois é. Para mim também.
            ELE: (em pausa) E aí? Muita correria?
            ELA: Muita. Quase não paro. E você?
            ELE: Também. Não tenho tempo pra nada.
            (silêncio)
            ELE: E... quando é que você aparece por aqui?
            ELA: Se você tiver tempo, hoje mesmo.
            ELE: (rindo) Está fazendo um dia lindo aqui.
            ELA: Eu sei.
            (outro silêncio)
            ELE: Sabe como?
            ELA: Estou a quinze minutos da sua casa.
            (mais e mais silêncio)
            ELE: Fazendo o quê?
            ELA: Vim para um trabalho que não rolou. Estou com a tarde livre. E você?
            ELE: É... eu...não..., mas à noite eu ainda não tenho compromisso.
            ELA: Oito e meia no lugar de sempre?
            ELE: Oito e meia no lugar de sempre.
            Desligaram e ambos precisaram se mexer. Ele foi até a cozinha e abriu a geladeira. Não pegou nada. Ficou pegando ar fresco. Ela foi até a janela olhar o dia lindo. Era verdade. Ambos se questionaram. Ela achou-se cara-de-pau. Ele achou-a corajosa, como sempre. Ela sentiu-se ridícula. Ele sentiu-se um banana. Ela achou-se precipitada. Ele tímido. Ela achou aquilo tudo muito perigoso. Ele não queria mudar sua vida. Ela estava insegura. Ele muito nervoso. Repetiram para si o curto diálogo mais de cem vezes e a cada frase arrependiam-se de não terem dito outras coisas. 5 horas. 6 horas. 7. 7 e meia. Ela sente uma pontada na barriga. Ele uma pressão no peito. O telefone dele toca:
            ELA: Oi.
            ELE: Oi.
            ELA: Escuta, eu não vou poder ir. Não estou muito legal.
            ELE: Está bem.
            ELA: A gente pode deixar para amanhã.
            ELE: Amanhã estou muito ocupado, não posso mais.
            ELA: Então depois de amanhã.
            ELE: A gente se fala.
            Desligaram. Ambos não precisavam mais se mexer. Respiraram aliviados. Ele foi até a geladeira e pegou o jantar frio que estava guardado. Ela foi até a janela e fumou um cigarro. A velha vida, enfim, de volta. Tinha sido apenas uma idéia, que passara.
            Ele foi deitar-se. Ela ficou olhando a noite linda que se seguia àquele dia lindo. Ele sentiu ódio dela. Ela achou-se sensata. Ele achou-se bobo. Ela teve vergonha. Ele arrependeu-se. Ela sentia medo. Ele achava-se correto. Ela achava-se coerente. Ele lógico. Ela estava aliviada. Ele respirava. Ela queria parar de pensar. Ele tentava dormir. Repetiram para si o curto diálogo outras cem vezes e a cada frase arrependiam-se de não terem dito novamente outras coisas. Ela olhou para a noite e notou que as Três Marias havia cruzado o céu e ela ainda estava ali. Ele virou-se na cama e notou que o ponteiro havia cruzado o relógio e ele ainda estava ali. Então, pararam de achar e pela primeira vez admitiram que sentiam falta um do outro. E dormiram.
            No dia seguinte, ele já estava muito atarefado. Os sentimentos já haviam se transformado em flashes quando toca o telefone:
            ELA: Oito e meia.
            ELE: Oito e meia.
            Então, oito e meia. Lá estavam os dois no lugar de sempre. Ele, agitado, vinha da correria. Ela, impávida. Entraram no carro dela e não sabiam para onde ir. Sorriam. Ela olhou as mãos dele. Ele o cabelo dela. Ela a orelha dele. Ele a perna dela. Ela o nariz dele. Ele a unha dela. Sorriam. Como não sabiam para onde ir, o carro foi sozinho para mais um lugar de sempre. Sentaram numa mureta e de lá tinham a vista de toda a cidade. O estômago dela estava contraído. O maxilar dele também. Ela olhava para frente. Ele suava. As pernas dela tremiam. Ele estalava os dedos. Ficaram horas assim, sorrindo de nada e maltratando o corpo com o que não diziam, ou viviam. Só falaram bobagens. Um deles chegou a dizer: “Adoro essas luzes acesas em volta da água.” E o outro teve a coragem de responder: “É..., eu também acho isso chocante.” 
            Estava na hora de ir embora. Ele precisava acordar cedo, pois tinha muito o que correr. Ela estava apertada e precisava ir ao banheiro. Entraram no carro e mudos ficaram rodando um tempo pelas ruas sem tomar a direção de casa. Elas dizia que adorava aquelas casas. Ele dizia que aquele era o bairro dos seus sonhos. Ela foi deixá-lo em casa. Ele preocupou-se em rapidamente abrir aporta do carro. Despedidas eram fatais. Ela não reclamou. Ele disse: “Então..., se cuida.” Ela não teve o que responder e acelerou.
            Ele já estava se preparando pra deitar quando toca a campainha:
            ELA: Estou apertada pra fazer xixi.
            ELE: Ahm claro, fique à vontade.
            Ela foi ao banheiro e apenas por alguns segundos pôde sentir-se aliviada. Ela sabia onde estava e o perigo que aquilo tudo significava. Ela sentiu-se constrangida, não deveria ter vindo. Ele morria de vergonha; estava usando um pijama ridículo. Ela se olhara no espelho; estava horrível. Ele não tinha nada para oferecer. Ela não tinha coragem de sair do banheiro. Ele estava começando a ficar preocupado. Ele ajeitou a casa. Ela ajeitou-se. Abriu a porta. Ele correu para o sofá:
            ELE: Desculpe a bagunça...
            ELA: Nada... Eu vim sem avisar.
            ELE: Eu não tenho nada para oferecer...
            ELA: Eu já estou de saída...
            Fizeram silêncio. Ela foi até a janela, olhou para o céu e viu que as Três Marias estavam lá. Ele olhou para o relógio. E depois daí, não olharam mais nada. Ambos ainda tentaram achar alguma coisa, mas não foi possível. Tremiam. Não se acha nada quando se treme. A última coisa que viram antes de adormecer é que as Três Marias estavam do outro lado do céu e que o ponteiro do relógio estava quase na hora de despertar. Então, com um tapa, ele o desligou. Não era preciso mais correr.
 
* * *
 
            Os dias que se seguiram a essa noite são quase impossíveis de serem contados. As horas de claridade transformaram-se num intervalo inútil entre os encontros. Ambos concordavam que a vida lá fora era completamente desnecessária. Tudo o que precisavam estava ao alcance da mão, no travesseiro ao lado. Para eles tanto fazia se era noite ou dia. Sorriam. De lá só saíam quando eram fatalmente interrompidos. Ela tinha que pegar as malas que abandonara na casa da amiga. Ele tinha que explicar para o mundo por que parara de correr. E, quando não se viam, entre lágrimas diziam: “Oito e meia no lugar de sempre...” E até oito e meia iam ao inferno e voltavam contando os segundos que não passavam. Até que, enfim, as Três Marias apareciam e o despertador podia ser desligado.
            Durante todo o tempo em que estavam juntos pouco conversavam. Quando ficavam muito tempo olhando para o teto estrelado, ela brincava: “ O que você está pensando?” Ao que ele respondia: “Não penso, logo existo...” Sorriam. Haviam descoberto que o amor não era matemático. O pacto de um silêncio mútuo havia se estabelecido entre eles como garantia de uma futura vida em paz. Não sabiam nada um do outro além do que viviam juntos no momento presente. Faziam questão de deixar explícita a liberdade de cada um. Ambos sabiam da corda bamba que separava o ontem do hoje e preferiam não se arriscar. O que eles não sabiam era que já estavam se arriscando. E que não dava mais pra voltar.
            Foi assim que, num dos intermináveis encontros o silêncio de ambos, como um pulmão afogado, dilatou-se. Ela perguntou-lhe mais uma vez, brincando: “O que você está pensando?”, e daí não foi mais possível calar. Ele precisava dizer. Ela também. Então disseram:
            ELE: Olha, eu não estou me sentindo bem... preciso ser honesto. Sabe..., eu tenho uma pessoa.
            Ela olhou-o em silêncio. E respondeu:
            ELA: Eu também estou me sentindo mal. Tem uma pessoa... me esperando...
            E a partir daí se sentaram e explicaram suas vidas como se estivessem mostrando as vantagens e desvantagens de um negócio. Ambos não queriam interferir na liberdade do outro e pacientemente ouviam a tudo que se dizia. Terminaram a conversa cordialmente e foram se deitar. Viraram-se cada um para um lado e da janela ela pôde ver as Três Marias. Ele pôs o relógio para despertar. Não falavam. Repetiram para si o longo diálogo mais de cem vezes e a cada frase arrependiam-se de não terem dito outras coisas. Mas, o pacto de um silêncio mútuo havia se estabelecido entre eles, só que dessa vez, sem a garantia de uma futura vida em paz. Não sorriam. Sofriam. Haviam esquecido que o amor não era matemático.
            No dia seguinte tentaram fazer com que tudo parecesse normal. Mas sabiam que estavam tentando e isso já tornava tudo impossível. Ela tentava ser espontânea. Ele tentava descontrair. Ela tentava ser agradável. Ele tentava reagir. E nada acontecia. Aos poucos o amor desaparecia e eles, num esforço de sobreviver, tentavam e tentavam e tentavam. Até que ela disse:
            ELA: Comprei minha passagem de volta.
            Ele não teve o que responder. Ambos sabiam em silêncio que não poderiam mais se ver. Os flashes que fotografaram o passado eram claros demais para conviver com a realidade. Ofuscavam. Ele perguntou:
            ELE: Qual o horário do vôo?
            E ela respondeu:
            ELA: Oito e meia.
            Ele foi levá-la no aeroporto. Como no primeiro dia em que se reencontraram, só conversaram bobagens. Ele falava da quantidade de coisas que tinha pra fazer. Ela concordava. Ele olhava o cabelo dela. Ela as mãos dele. Ele as pernas dela. Ela a orelha dele. Eles queriam parar de falar, mas não conseguiam. Tremiam. Ambos sabiam que o silêncio significaria a possibilidade de uma futura vida em paz. A dois. E isso era muito perigoso. A vida ia ter que mudar.
            Ela despachou as bagagens e, juntos, foram para o portão de embarque. Abraçaram-se. Ela sentiu o cheiro dele. Ele a carne dela. O estômago dela estava contraído. O maxilar dele também. Ambos sabiam que teriam que falar agora ou então calar-se para sempre. Então, ele perguntou, brincando: “O que você está pensando?” Ao que ela respondeu: “Não penso, logo existo.”
            E entrou no avião
            Infelizmente, o amor não era matemático.
 
* * *
 
            No avião, ela sentara-se ao lado de uma velhinha. Olhava para frente, não aceitava comida nem bebida. Estava enjoada da vida. Não queria conversar. Só pensava em como era difícil acertar, acertar, acertar. Até que, para desgosto seu, a velhinha começou a falar:
            ¾ Sabe, minha filha, quando eu era jovem, tudo isso aqui embaixo era diferente...
            Ela não estava acreditando, ia chorar. A velha continuou:
            ¾ As coisas mudam... Você vê, eu, daqui a pouco já estou fazendo a minha última viagem... Aquela... E as coisas vão continuar mudando mesmo assim, não é?... Pois é... eu quando tinha a sua idade vivia sentindo uns tremores..., hoje, só me tremem as pernas de reumatismo... Você vê o que é o tempo minha filha. Olha, quando eu me lembro de como eu ficava sofrida por qualquer coisinha..., ah, quando se é novo se leva tudo a sério...Você vê, o que é que eu tenho hoje da minha vida que passou?... Só lembro... Meu pai... minha mãe... meu marido... Tudo fotografia. E eu vou virar fotografia daqui a pouquinho... As coisas passam muito depressa, minha filha, e essa sua juventude vai embora com uma tremidinha... Olha só lá embaixo... se tremer, desaba tudo... E a gente aqui achando que vale alguma coisa... Eu, se pudesse fazer tudo de novo, ia dar umas desabadinhas na minha vida... Você vê, esse avião mesmo que a gente está, se tremer..., bobeou, morreu todo mundo. E quem viveu mais? Sabe o que é que a gente vai virar se isso acontecer? Fotografia... Fotografia do jornal... Ah, antes que eu me esqueça, você tá indo pra onde?...
            Ela não sabia mais pra onde. Pediu licença e como um raio foi parar no banheiro do avião. Queria que parassem o mundo para que ela pudesse descer. “Onde estaria ele agora?” – ela pensava. “Nos braços da outra.” – ela concluía.
            Mas, não. Ele não estava nos braços de ninguém. Sozinho, ele percorria as ruas, virando o volante sem rumo. “Aquela mulher...” – ele pensava. O passado, como flashes, projetava suas imagens no pára-brisas do carro. Nada tremia. A vida assim era chata. – ele concluía.
            Foi para casa e deitou-se na cama. Acertou o despertador e tentou dormir. Tinha muito o que fazer no dia seguinte. Tentou, tentou, tentou. E, claro, não conseguiu. Foi na geladeira pegar seu jantar frio. Deveria estar feliz com a velha vida de volta. Mas não estava. O silêncio que vivia agora naquele apartamento estabelecia uma futura vida infeliz. Nada tremia e, ao contrário da segurança que antes sentia, aquilo significava a morte.
            Então, num ímpeto de fazer a sua nova velha ida tornar a viver, ele correu para o quarto e começou a fazer suas malas. Não, sem antes olhar pela janela e encontrar as Três Marias no céu.
            Ela olhava o relógio. Contava os segundos para que o avião aterrissasse. Queria comprar a próxima passagem de ida para o lugar de onde saíra. Voltava a tremer e isso era um bom sinal de vida. Queria beijar os pés da velhinha, mas ela dormia um sono profundo, tão profundo que dava pena de acordar.
            O próximo vôo sairia dentro de alguns instantes. Ela viu um orelhão. Foi telefonar, mas desistiu. Seria uma surpresa.
            Ele já havia arrumado tudo. Estava na porta do apartamento quando olhou para o telefone.  Ele poderia tremer e uma voz conhecida poderia dizer “Oi” e poderia marcar um encontro e poderia ser ela e poderia... Poderia. Mas não era. O silêncio do telefone estabelecia o ponto final do futuro daquela relação.
            No dia seguinte pela manhã ela chegava ao apartamento. Tremeu a campainha. Uma vez, duas, muitas. Nada. Tentou abrir a porta. Nada. Desceu para falar com o porteiro e este informou que ele havia ido embora. Ela perguntou se ele estava sozinho e o porteiro disse que ele estava sozinho há mais de dois anos. Ninguém sabia o seu destino. Ela congelou. A partir dali, tinha certeza de que começava a morrer.
 
* * *
 
Assim como a primeira noite que passaram juntos, a vida que se seguiu a essa separação é praticamente impossível de ser contada. Durante dias e dias ela foi ao apartamento numa esperança de que o porteiro tivesse alguma notícia para lhe dar. Pela primeira vez ela ouvia o que era o silêncio. E era totalmente diferente dos que viviam, quando, juntos, somente respiravam. As noites se transformaram em intervalos inúteis entre uma ida e outra ao local onde ela sentira, pela última vez, um tremor. Desesperava. A ausência de qualquer notícia que fosse aumentava a cada minuto a sensação já clara da perda lenta e gradual de uma vida em vida. Assistia à sua morte de corpo presente.
            Ele havia saído do país decidido a reconstruir o que em tão pouco tempo perdera. Longe seria certamente mais fácil, por isso aceitou permanecer um tempo na casa de uma irmã que lhe oferecera um teto lá fora. Logo arrumaria um novo emprego e os novos compromissos tratariam de preencher o espaço que sobrara.
            E assim o fizeram. Realmente, em pouco tempo ele estava empregado e já muito ocupado. Ela desistira de tudo pela calçada do prédio esperando o momento exato de interrogar pela milésima vez o porteiro. Decidiu permanecer no país e começar uma vida de novo. E, realmente, em pouco tempo ela também já estava empregada e muito ocupada. Ter muito o que fazer e correr de um lado para outro ajudava imensamente ao que ambos chamavam de reconstrução. Achavam que estavam em movimento. Achavam.
            Em pouco tempo começaram a desconfiar que a ginástica em que transformaram suas vidas era inútil. Estavam cansados por fora, mais nada tremia por dentro. Os flashes que fotografaram o passado acendiam no presente, ofuscando o que estivessem fazendo. Ambos sabiam que era impossível velar o filme da memória. Tinham certeza de que as imagens que viam eram espantosamente reais e, como numa fotografia, não conseguiam se convencer de que o tempo havia passado.
            Mas havia. Ele conhecera outra. Ela estava morando com alguém. O emprego dele deu certo. Ela arrumou muitos outros. Ele abriu um negócio. Ela foi pedida em casamento. Ele comprou uma casa. Ela aceitou o pedido. Ele casou-se com a outra. Ela decorou o novo apartamento. Ele viajava sempre. Ela andava na praia. Ele voltava do trabalho. Ela fazia comida para o marido.
            A vida se solidificara assim, e isso não era ruim. Nem bom. Era. Ambos sabiam que tinham voltado a um lugar que era praticamente impossível de sair. De tanto que tentaram, acabaram conseguindo que os flashes diminuíssem. Os intervalos entre um relâmpago e outro foram ficando mais espaçados ao longo das horas e isso, de certa forma, parecia bom. Tinham saído do inferno e entrado novamente na vida comum. Só que ambos sabiam que desde o dia em que se viram pela última vez, nada mais havia tremido. A única vez que ela tremeu depois desses anos todos, foi quando soube que estava grávida. A única vez que ele tremeu foi quando viu o seu próprio rosto impresso no rosto de sua filha que acabara de nascer. Ela teve três filhas e em todas as três pôs o primeiro nome de Maria. Secretamente, ambos desejavam que suas filhas fossem, na verdade, irmãs. Nenhum dos dois teve um filho homem.
            A vida nem boa nem ruim se espalhava ao longo dos dias. E dos meses. E dos anos. O fato de terem tido um dia um tremor servia como alento e mascarava a inércia. Algumas vezes chegavam a se convencer da profunda opção que tinham realizado. E aí ficavam felizes e não se sentiam responsáveis por nada. Se o destino havia decidido assim, certamente devia ser melhor assim.
            Tudo certo até uma noite em que ela estava no quarto das crianças, olhando as três Marias dormirem. Estava com insônia. O marido também dormia e o silêncio daquele apartamento começou a provocar uma erosão no solo tão sedimentado. Ela caminhou pela sala, olhou os móveis, a cozinha, o guarda-roupa. Olhou pro seu marido deitado, pras filhas, e constatou que nada tremia. Aquela era a sua vida e ela própria havia virado uma fotografia. Só que nela, o tempo havia passado. Ela se sentia um papel amarelado e sua memória era um negativo perdido onde a vida jamais poderia ser revelada novamente.
            Coincidência ou não, neste mesmo momento ele fazia o rotineiro gesto de pôr o seu relógio para despertar. Sua mulher dormia, sua filha também. O silêncio daquele apartamento fazia os segundos do relógio aumentarem de volume assustadoramente. Ou seria o coração que estaria aumentando seu volume numa tentativa desesperada de gerar? Ele não sabia. Deitado, olhava para o despertador e um flash veio salvá-lo. Ele precisava despertar. Estava acordado por fora, mas dormia por dentro. O tempo havia passado e ele se sentia um relógio velho. A vida, enfim, estava se manifestando mais uma vez.
 
* * *
 
            É impressionante a quantidade de vezes que a vida se manifesta, incansável. E é impressionante a quantidade de vezes que fingimos, cansados, não ver essas manifestações. Ao contrário do que podemos pensar ou torcer, nenhum dos dois tomou atitude alguma. Diante da percepção da inércia nada mais fizeram que passar a noite tentando convencer a si próprios de que tudo não passava de uma crise passageira. As imagens de suas juventudes vinham somente perturbar a já estabelecida vida com ilusões completamente inviáveis. Nada daquilo era absolutamente possível e não havia nenhum motivo real para a suposta infelicidade. Ele pensava na sua mulher. Ela nas suas filhas. Ele enumerava as qualidades dela. Ela ficava feliz de ver as meninas. Ele tinha um bom emprego. Ela tinha tudo. Ele constituíra uma família. Ela tinha um marido maravilhoso. Ambos tinham saúde.
            Pensando assim, concluíram que, na verdade, nada lhes faltava. Isso significava que eram felizes e que todo aquele movimento havia sido apenas mais um flash que teimava em envolver-lhes a vida com poesia. Ambos pensaram que o passado é sempre poético e que por si só já garante à vida um pouco de romantismo. Então, foram dormir. O dia seguinte iria ser cheio de afazeres e era necessário ser prático àquela hora da madrugada. Antes de fecharem os olhos, ambos disseram em silêncio, como se a vida ainda pudesse insistir: “Estou ficando velho...”
            No dia seguinte estava tudo realmente normal. Ele encontrou com vários amigos e reparou que todos tinham uma placidez nos olhos, característica da inevitável passagem do tempo. Então, tranquilizou-se. Era assim mesmo. Ela também convenceu-se rapidamente. Suas filhas encheram-na de beijos pela manhã e ela não teve como pensar que a vida pudesse estar errada. Encontrou nos rostos das suas amigas um meio sorriso que também chamou de inevitável passagem do tempo. Ela sentiu-se uma pessoa comum e isso confortou-a.
            E assim passaram-se dias. Meses. Anos. Séculos, diria. Passaram-se, na verdade, três mil Marias até que um novo tremor viesse abalar o sedimento da lucidez. Ele já era avô. Ela já era viúva. Na sala de jantar dele aumentava a quantidade de porta-retratos onde ele era a figura mais antiga. Ela passava os dias entre as casas das Marias, sempre preocupada em não incomodar o futuro que se abria para as antigas meninas, agora mulheres casadas. Tudo o que lembravam da vida tinha virado histórias onde muitas vezes nem eles próprios tinham certeza do que tinha realmente acontecido. Ele não precisava mais pôr o relógio para despertar. Estava aposentado. Ela não olhava mais para o céu. Enxergava muito mal e quase não conseguia mais distinguir as estrelas. Ele olhava as crianças correndo no almoço de domingo e sentia-se a própria máquina de fotografar o tempo. Só que não se sentia feliz quando, à noite, desligava o antigo despertador. Tinha uma estranha memória de uma felicidade que sentira ao apertar o botão ue cancelava a realidade. E não era o que acontecia agora. Pela primeira vez em tantos anos estava livre pra descansar e sentia que a única coisa que precisava era de movimento. Por dentro. Ele descobrira que ainda havia tempo.
 
* * *
 
            Graças à vida, alguém sempre se ilumina. Dessa vez foi ele. O ócio, ao contrário do que podia parecer foi exatamente proveitoso. Pela primeira vez ele ficou longas horas em silêncio. E descobriu que no fundo de sua alma tremia ainda uma enorme vontade de viver. Não sei como, acho que através da lista telefônica, ele conseguiu chegar ao número de uma das três Marias. Acho que com a vontade que ele estava esse número poderia até ter caído do céu. O fato é que, ele ligou e descobriu que ela estava lá. Só que ele não havia recebido uma boa notícia. Maria havia lhe dito que a mãe estava muito doente e que por isso não podia ir ao telefone. Ela estava com um problema no coração onde as batidas cardíacas descompassavam. Havia perdido o ritmo da vida.
            Ele não acreditou no que ouvira. Pela primeira vez depois de tantos anos sentia o seu corpo todo tremer desesperadamente. Precisava vê-la e isso era uma ordem.
            Despediu-se da mulher, da filha e das crianças dizendo que havia se inscrito numa excursão que fazia programas para a terceira idade. Como era notório que ele estava muito entediado, todos concordaram prontamente com o aproveitamento dessas férias prolongadas.
            E assim ele se foi. Estranhamente ele sentia como se toda a sua ida tivesse sido apenas um intervalo entre a despedida e o próximo encontro. Parecia que todos aqueles anos não tinham passado e que havia sido ontem que ela entrara no avião. Ele nunca tinha sido invadido por tantos flashes ao mesmo tempo e passado e presente fundiam-se agora no milagre do movimento. Ele estava indo e só isso era importante.
            Chegou à porta do edifício. “Será que ainda havia tempo?”, pensava ele em silêncio com o pavor de alguma outra possibilidade. Tocou a campainha. Maria atendeu. Perguntou quem era e ele disse ser um amigo que vinha de muito longe especialmente para vê-la. Pediu alguns minutos que fossem, suficientes para um breve encontro sem palavras. Maria atendeu. Conduziu-o até a porta do quarto e falou ao ouvido da mãe que tinha um amigo que queria vê-la, que preferiu não dizer o nome. Ela, então, pediu que o fizesse entrar e que a deixasse sozinha com ele.
            Os instantes que se seguiram a esse encontro são quase impossíveis de serem contados. Ela permaneceu de olhos fechados. Ele ficou imóvel ao lado da porta por alguns segundos. Não muitos. Aproximou-se da cama e ela, estendendo uma das mãos, acariciou-lhe a cabeça agora branca. Sua mão tremia e ele, não resistindo, entregou-lhe o corpo num abraço onde pôde ouvir a voz dela, também trêmula, dizer: “Eu sabia que você viria. Agora você já pode ir.” Só que agora não era mais possível desgrudar daquela outra vida. Estavam de olhos fechados. Ela sentia a orelha dele. Ele sentia os cabelos dela. Ela sentia a unha dele. Ele a coxa dela. Ela o cheiro dele. Ele a carne dela. Estranho como a única coisa que os fazia sentir que o tempo havia passado era a pele que as trêmulas mãos sentiam ressecadas, talvez por terem engolido tantas lágrimas. O coração dela, diante de tudo isso, temia não resistir a tantos tremores. Sentia-se mais vivo do que nunca e isso fazia com que não soubesse o que estava realmente acontecendo. Um dos dois perguntou: “O que você está pensando?”. E o outro respondeu: “Não penso, logo existo”. Pela primeira vez perceberam que para existir não era preciso pensar. Que talvez, devessem não ter pensado a vida inteira. Ela, então, abriu os olhos e pôde vê-lo, finalmente. No fundo de suas almas, ambos puderam ler que o tempo com sua marcha esmagadora havia inevitavelmente passado. Mas, nenhum dos dois tocou no assunto. Os tremores espalhavam-se violentamente pelos corpos daqueles dois seres que se encontravam ali abraçados e não era possível fazer mais nada. Ela, então, sentiu um tremor mais forte e, fechando os olhos, sorriu. Ele lembrou-se de como ela era bonita quando, entrelaçada às suas pernas, fechava os olhos e , tremendo, sorria de prazer. E, em verdade, era isso o que acontecia. Apertaram ainda mais o abraço pois sentiam que um terremoto estava para acontecer. Então, como garantia, ela disse-lhe: “Oito e meia no lugar de sempre?” Ao que ele respondeu: “Oito e meia no lugar de sempre.”
            A partir daí, uma constelação abriu-se para os dois. Numa grande explosão, deu-se o mudo tremor e uma avalanche de estrelas inundou aquele silêncio. Um silêncio mútuo que, desta vez, estabelecia uma futura vida em paz. Sem nunca mais precisar pôr o relógio para acordar.