Existem respostas que pairam por aí. Histórias análogas, verdadeiras e inventadas.
Esta aqui veio por recomendação de Giggia Barreto.
TREMOR
(extraído do livro Só, de Bianca
Ramoneda)
Assim
estavam os dois quando o telefone dele tocou:
ELE: Alô.
ELA: Oi.
(pausa)
ELE: Oi.
(outra pausa) Que surpresa.
ELA: Pois
é. Para mim também.
ELE: (em
pausa) E aí? Muita correria?
ELA:
Muita. Quase não paro. E você?
ELE:
Também. Não tenho tempo pra nada.
(silêncio)
ELE: E...
quando é que você aparece por aqui?
ELA: Se
você tiver tempo, hoje mesmo.
ELE:
(rindo) Está fazendo um dia lindo aqui.
ELA: Eu
sei.
(outro
silêncio)
ELE: Sabe
como?
ELA:
Estou a quinze minutos da sua casa.
(mais e
mais silêncio)
ELE:
Fazendo o quê?
ELA: Vim
para um trabalho que não rolou. Estou com a tarde livre. E você?
ELE: É...
eu...não..., mas à noite eu ainda não tenho compromisso.
ELA: Oito
e meia no lugar de sempre?
ELE: Oito
e meia no lugar de sempre.
Desligaram
e ambos precisaram se mexer. Ele foi até a cozinha e abriu a geladeira. Não
pegou nada. Ficou pegando ar fresco. Ela foi até a janela olhar o dia lindo.
Era verdade. Ambos se questionaram. Ela achou-se cara-de-pau. Ele achou-a
corajosa, como sempre. Ela sentiu-se ridícula. Ele sentiu-se um banana. Ela
achou-se precipitada. Ele tímido. Ela achou aquilo tudo muito perigoso. Ele não
queria mudar sua vida. Ela estava insegura. Ele muito nervoso. Repetiram para
si o curto diálogo mais de cem vezes e a cada frase arrependiam-se de não terem
dito outras coisas. 5 horas. 6 horas. 7. 7 e meia. Ela sente uma pontada na
barriga. Ele uma pressão no peito. O telefone dele toca:
ELA: Oi.
ELE: Oi.
ELA:
Escuta, eu não vou poder ir. Não estou muito legal.
ELE: Está
bem.
ELA: A
gente pode deixar para amanhã.
ELE:
Amanhã estou muito ocupado, não posso mais.
ELA:
Então depois de amanhã.
ELE: A
gente se fala.
Desligaram.
Ambos não precisavam mais se mexer. Respiraram aliviados. Ele foi até a
geladeira e pegou o jantar frio que estava guardado. Ela foi até a janela e
fumou um cigarro. A velha vida, enfim, de volta. Tinha sido apenas uma idéia,
que passara.
Ele foi
deitar-se. Ela ficou olhando a noite linda que se seguia àquele dia lindo. Ele
sentiu ódio dela. Ela achou-se sensata. Ele achou-se bobo. Ela teve vergonha.
Ele arrependeu-se. Ela sentia medo. Ele achava-se correto. Ela achava-se
coerente. Ele lógico. Ela estava aliviada. Ele respirava. Ela queria parar de
pensar. Ele tentava dormir. Repetiram para si o curto diálogo outras cem vezes
e a cada frase arrependiam-se de não terem dito novamente outras coisas. Ela
olhou para a noite e notou que as Três Marias havia cruzado o céu e ela ainda
estava ali. Ele virou-se na cama e notou que o ponteiro havia cruzado o relógio
e ele ainda estava ali. Então, pararam de achar e pela primeira vez admitiram
que sentiam falta um do outro. E dormiram.
No dia
seguinte, ele já estava muito atarefado. Os sentimentos já haviam se
transformado em flashes quando toca o telefone:
ELA: Oito
e meia.
ELE: Oito
e meia.
Então,
oito e meia. Lá estavam os dois no lugar de sempre. Ele, agitado, vinha da
correria. Ela, impávida. Entraram no carro dela e não sabiam para onde ir.
Sorriam. Ela olhou as mãos dele. Ele o cabelo dela. Ela a orelha dele. Ele a
perna dela. Ela o nariz dele. Ele a unha dela. Sorriam. Como não sabiam para
onde ir, o carro foi sozinho para mais um lugar de sempre. Sentaram numa mureta
e de lá tinham a vista de toda a cidade. O estômago dela estava contraído. O
maxilar dele também. Ela olhava para frente. Ele suava. As pernas dela tremiam.
Ele estalava os dedos. Ficaram horas assim, sorrindo de nada e maltratando o
corpo com o que não diziam, ou viviam. Só falaram bobagens. Um deles chegou a
dizer: “Adoro essas luzes acesas em volta da água.” E o outro teve a coragem de
responder: “É..., eu também acho isso chocante.”
Estava na
hora de ir embora. Ele precisava acordar cedo, pois tinha muito o que correr.
Ela estava apertada e precisava ir ao banheiro. Entraram no carro e mudos
ficaram rodando um tempo pelas ruas sem tomar a direção de casa. Elas dizia que
adorava aquelas casas. Ele dizia que aquele era o bairro dos seus sonhos. Ela foi
deixá-lo em casa. Ele
preocupou-se em rapidamente abrir aporta do carro. Despedidas eram fatais. Ela
não reclamou. Ele disse: “Então..., se cuida.” Ela não teve o que responder e
acelerou.
Ele já
estava se preparando pra deitar quando toca a campainha:
ELA:
Estou apertada pra fazer xixi.
ELE: Ahm
claro, fique à vontade.
Ela foi
ao banheiro e apenas por alguns segundos pôde sentir-se aliviada. Ela sabia
onde estava e o perigo que aquilo tudo significava. Ela sentiu-se constrangida,
não deveria ter vindo. Ele morria de vergonha; estava usando um pijama
ridículo. Ela se olhara no espelho; estava horrível. Ele não tinha nada para
oferecer. Ela não tinha coragem de sair do banheiro. Ele estava começando a
ficar preocupado. Ele ajeitou a casa. Ela ajeitou-se. Abriu a porta. Ele correu
para o sofá:
ELE:
Desculpe a bagunça...
ELA:
Nada... Eu vim sem avisar.
ELE: Eu
não tenho nada para oferecer...
ELA: Eu
já estou de saída...
Fizeram
silêncio. Ela foi até a janela, olhou para o céu e viu que as Três Marias
estavam lá. Ele olhou para o relógio. E depois daí, não olharam mais nada.
Ambos ainda tentaram achar alguma coisa, mas não foi possível. Tremiam. Não se
acha nada quando se treme. A última coisa que viram antes de adormecer é que as
Três Marias estavam do outro lado do céu e que o ponteiro do relógio estava
quase na hora de despertar. Então, com um tapa, ele o desligou. Não era preciso
mais correr.
* * *
Os dias
que se seguiram a essa noite são quase impossíveis de serem contados. As horas
de claridade transformaram-se num intervalo inútil entre os encontros. Ambos
concordavam que a vida lá fora era completamente desnecessária. Tudo o que
precisavam estava ao alcance da mão, no travesseiro ao lado. Para eles tanto
fazia se era noite ou dia. Sorriam. De lá só saíam quando eram fatalmente
interrompidos. Ela tinha que pegar as malas que abandonara na casa da amiga.
Ele tinha que explicar para o mundo por que parara de correr. E, quando não se
viam, entre lágrimas diziam: “Oito e meia no lugar de sempre...” E até oito e
meia iam ao inferno e voltavam contando os segundos que não passavam. Até que,
enfim, as Três Marias apareciam e o despertador podia ser desligado.
Durante
todo o tempo em que estavam juntos pouco conversavam. Quando ficavam muito
tempo olhando para o teto estrelado, ela brincava: “ O que você está pensando?”
Ao que ele respondia: “Não penso, logo existo...” Sorriam. Haviam descoberto
que o amor não era matemático. O pacto de um silêncio mútuo havia se
estabelecido entre eles como garantia de uma futura vida em paz. Não sabiam nada um
do outro além do que viviam juntos no momento presente. Faziam questão de
deixar explícita a liberdade de cada um. Ambos sabiam da corda bamba que
separava o ontem do hoje e preferiam não se arriscar. O que eles não sabiam era
que já estavam se arriscando. E que não dava mais pra voltar.
Foi assim
que, num dos intermináveis encontros o silêncio de ambos, como um pulmão
afogado, dilatou-se. Ela perguntou-lhe mais uma vez, brincando: “O que você
está pensando?”, e daí não foi mais possível calar. Ele precisava dizer. Ela
também. Então disseram:
ELE:
Olha, eu não estou me sentindo bem... preciso ser honesto. Sabe..., eu tenho
uma pessoa.
Ela
olhou-o em silêncio. E
respondeu:
ELA: Eu
também estou me sentindo mal. Tem uma pessoa... me esperando...
E a
partir daí se sentaram e explicaram suas vidas como se estivessem mostrando as
vantagens e desvantagens de um negócio. Ambos não queriam interferir na
liberdade do outro e pacientemente ouviam a tudo que se dizia. Terminaram a
conversa cordialmente e foram se deitar. Viraram-se cada um para um lado e da
janela ela pôde ver as Três Marias. Ele pôs o relógio para despertar. Não
falavam. Repetiram para si o longo diálogo mais de cem vezes e a cada frase
arrependiam-se de não terem dito outras coisas. Mas, o pacto de um silêncio
mútuo havia se estabelecido entre eles, só que dessa vez, sem a garantia de uma
futura vida em paz. Não
sorriam. Sofriam. Haviam esquecido que o amor não era matemático.
No dia
seguinte tentaram fazer com que tudo parecesse normal. Mas sabiam que estavam
tentando e isso já tornava tudo impossível. Ela tentava ser espontânea. Ele
tentava descontrair. Ela tentava ser agradável. Ele tentava reagir. E nada
acontecia. Aos poucos o amor desaparecia e eles, num esforço de sobreviver,
tentavam e tentavam e tentavam. Até que ela disse:
ELA:
Comprei minha passagem de volta.
Ele não
teve o que responder. Ambos sabiam em silêncio que não poderiam mais se ver. Os
flashes que fotografaram o passado eram claros demais para conviver com a
realidade. Ofuscavam. Ele perguntou:
ELE: Qual
o horário do vôo?
E ela
respondeu:
ELA: Oito
e meia.
Ele foi levá-la
no aeroporto. Como no primeiro dia em que se reencontraram, só conversaram
bobagens. Ele falava da quantidade de coisas que tinha pra fazer. Ela
concordava. Ele olhava o cabelo dela. Ela as mãos dele. Ele as pernas dela. Ela
a orelha dele. Eles queriam parar de falar, mas não conseguiam. Tremiam. Ambos
sabiam que o silêncio significaria a possibilidade de uma futura vida em paz. A dois. E isso era
muito perigoso. A vida ia ter que mudar.
Ela
despachou as bagagens e, juntos, foram para o portão de embarque. Abraçaram-se.
Ela sentiu o cheiro dele. Ele a carne dela. O estômago dela estava contraído. O
maxilar dele também. Ambos sabiam que teriam que falar agora ou então calar-se
para sempre. Então, ele perguntou, brincando: “O que você está pensando?” Ao
que ela respondeu: “Não penso, logo existo.”
E entrou
no avião
Infelizmente,
o amor não era matemático.
* * *
No avião,
ela sentara-se ao lado de uma velhinha. Olhava para frente, não aceitava comida
nem bebida. Estava enjoada da vida. Não queria conversar. Só pensava em como
era difícil acertar, acertar, acertar. Até que, para desgosto seu, a velhinha
começou a falar:
¾
Sabe, minha filha, quando eu era jovem, tudo isso aqui embaixo era diferente...
Ela não
estava acreditando, ia chorar. A velha continuou:
¾ As
coisas mudam... Você vê, eu, daqui a pouco já estou fazendo a minha última
viagem... Aquela... E as coisas vão continuar mudando mesmo assim, não é?...
Pois é... eu quando tinha a sua idade vivia sentindo uns tremores..., hoje, só
me tremem as pernas de reumatismo... Você vê o que é o tempo minha filha. Olha,
quando eu me lembro de como eu ficava sofrida por qualquer coisinha..., ah,
quando se é novo se leva tudo a sério...Você vê, o que é que eu tenho hoje da
minha vida que passou?... Só lembro... Meu pai... minha mãe... meu marido...
Tudo fotografia. E eu vou virar fotografia daqui a pouquinho... As coisas passam
muito depressa, minha filha, e essa sua juventude vai embora com uma
tremidinha... Olha só lá embaixo... se tremer, desaba tudo... E a gente aqui
achando que vale alguma coisa... Eu, se pudesse fazer tudo de novo, ia dar umas
desabadinhas na minha vida... Você vê, esse avião mesmo que a gente está, se
tremer..., bobeou, morreu todo mundo. E quem viveu mais? Sabe o que é que a
gente vai virar se isso acontecer? Fotografia... Fotografia do jornal... Ah,
antes que eu me esqueça, você tá indo pra onde?...
Ela não
sabia mais pra onde. Pediu licença e como um raio foi parar no banheiro do
avião. Queria que parassem o mundo para que ela pudesse descer. “Onde estaria
ele agora?” – ela pensava. “Nos braços da outra.” – ela concluía.
Mas, não.
Ele não estava nos braços de ninguém. Sozinho, ele percorria as ruas, virando o
volante sem rumo. “Aquela mulher...” – ele pensava. O passado, como flashes,
projetava suas imagens no pára-brisas do carro. Nada tremia. A vida assim era
chata. – ele concluía.
Foi para
casa e deitou-se na cama. Acertou o despertador e tentou dormir. Tinha muito o
que fazer no dia seguinte. Tentou, tentou, tentou. E, claro, não conseguiu. Foi
na geladeira pegar seu jantar frio. Deveria estar feliz com a velha vida de
volta. Mas não estava. O silêncio que vivia agora naquele apartamento
estabelecia uma futura vida infeliz. Nada tremia e, ao contrário da segurança
que antes sentia, aquilo significava a morte.
Então,
num ímpeto de fazer a sua nova velha ida tornar a viver, ele correu para o quarto
e começou a fazer suas malas. Não, sem antes olhar pela janela e encontrar as
Três Marias no céu.
Ela
olhava o relógio. Contava os segundos para que o avião aterrissasse. Queria
comprar a próxima passagem de ida para o lugar de onde saíra. Voltava a tremer
e isso era um bom sinal de vida. Queria beijar os pés da velhinha, mas ela
dormia um sono profundo, tão profundo que dava pena de acordar.
O próximo
vôo sairia dentro de alguns instantes. Ela viu um orelhão. Foi telefonar, mas
desistiu. Seria uma surpresa.
Ele já
havia arrumado tudo. Estava na porta do apartamento quando olhou para o
telefone. Ele poderia tremer e uma voz
conhecida poderia dizer “Oi” e poderia marcar um encontro e poderia ser ela e
poderia... Poderia. Mas não era. O silêncio do telefone estabelecia o ponto
final do futuro daquela relação.
No dia
seguinte pela manhã ela chegava ao apartamento. Tremeu a campainha. Uma vez,
duas, muitas. Nada. Tentou abrir a porta. Nada. Desceu para falar com o
porteiro e este informou que ele havia ido embora. Ela perguntou se ele estava
sozinho e o porteiro disse que ele estava sozinho há mais de dois anos. Ninguém
sabia o seu destino. Ela congelou. A partir dali, tinha certeza de que começava
a morrer.
* * *
Assim como a primeira noite que
passaram juntos, a vida que se seguiu a essa separação é praticamente
impossível de ser contada. Durante dias e dias ela foi ao apartamento numa
esperança de que o porteiro tivesse alguma notícia para lhe dar. Pela primeira
vez ela ouvia o que era o silêncio. E era totalmente diferente dos que viviam,
quando, juntos, somente respiravam. As noites se transformaram em intervalos
inúteis entre uma ida e outra ao local onde ela sentira, pela última vez, um
tremor. Desesperava. A ausência de qualquer notícia que fosse aumentava a cada
minuto a sensação já clara da perda lenta e gradual de uma vida em vida. Assistia à
sua morte de corpo presente.
Ele havia
saído do país decidido a reconstruir o que em tão pouco tempo perdera. Longe
seria certamente mais fácil, por isso aceitou permanecer um tempo na casa de
uma irmã que lhe oferecera um teto lá fora. Logo arrumaria um novo emprego e os
novos compromissos tratariam de preencher o espaço que sobrara.
E assim o
fizeram. Realmente, em pouco tempo ele estava empregado e já muito ocupado. Ela
desistira de tudo pela calçada do prédio esperando o momento exato de
interrogar pela milésima vez o porteiro. Decidiu permanecer no país e começar
uma vida de novo. E, realmente, em pouco tempo ela também já estava empregada e
muito ocupada. Ter muito o que fazer e correr de um lado para outro ajudava
imensamente ao que ambos chamavam de reconstrução. Achavam que estavam em movimento. Achavam.
Em pouco
tempo começaram a desconfiar que a ginástica em que transformaram suas vidas
era inútil. Estavam cansados por fora, mais nada tremia por dentro. Os flashes
que fotografaram o passado acendiam no presente, ofuscando o que estivessem
fazendo. Ambos sabiam que era impossível velar o filme da memória. Tinham
certeza de que as imagens que viam eram espantosamente reais e, como numa
fotografia, não conseguiam se convencer de que o tempo havia passado.
Mas
havia. Ele conhecera outra. Ela estava morando com alguém. O emprego dele deu
certo. Ela arrumou muitos outros. Ele abriu um negócio. Ela foi pedida em casamento. Ele
comprou uma casa. Ela aceitou o pedido. Ele casou-se com a outra. Ela decorou o
novo apartamento. Ele viajava sempre. Ela andava na praia. Ele voltava do
trabalho. Ela fazia comida para o marido.
A vida se
solidificara assim, e isso não era ruim. Nem bom. Era. Ambos sabiam que tinham
voltado a um lugar que era praticamente impossível de sair. De tanto que
tentaram, acabaram conseguindo que os flashes diminuíssem. Os intervalos entre
um relâmpago e outro foram ficando mais espaçados ao longo das horas e isso, de
certa forma, parecia bom. Tinham saído do inferno e entrado novamente na vida
comum. Só que ambos sabiam que desde o dia em que se viram pela última vez,
nada mais havia tremido. A única vez que ela tremeu depois desses anos todos,
foi quando soube que estava grávida. A única vez que ele tremeu foi quando viu
o seu próprio rosto impresso no rosto de sua filha que acabara de nascer. Ela
teve três filhas e em todas as três pôs o primeiro nome de Maria. Secretamente,
ambos desejavam que suas filhas fossem, na verdade, irmãs. Nenhum dos dois teve
um filho homem.
A vida
nem boa nem ruim se espalhava ao longo dos dias. E dos meses. E dos anos. O
fato de terem tido um dia um tremor servia como alento e mascarava a inércia.
Algumas vezes chegavam a se convencer da profunda opção que tinham realizado. E
aí ficavam felizes e não se sentiam responsáveis por nada. Se o destino havia
decidido assim, certamente devia ser melhor assim.
Tudo
certo até uma noite em que ela estava no quarto das crianças, olhando as três
Marias dormirem. Estava com insônia. O marido também dormia e o silêncio
daquele apartamento começou a provocar uma erosão no solo tão sedimentado. Ela
caminhou pela sala, olhou os móveis, a cozinha, o guarda-roupa. Olhou pro seu marido
deitado, pras filhas, e constatou que nada tremia. Aquela era a sua vida e ela
própria havia virado uma fotografia. Só que nela, o tempo havia passado. Ela se
sentia um papel amarelado e sua memória era um negativo perdido onde a vida
jamais poderia ser revelada novamente.
Coincidência
ou não, neste mesmo momento ele fazia o rotineiro gesto de pôr o seu relógio
para despertar. Sua mulher dormia, sua filha também. O silêncio daquele
apartamento fazia os segundos do relógio aumentarem de volume assustadoramente.
Ou seria o coração que estaria aumentando seu volume numa tentativa desesperada
de gerar? Ele não sabia. Deitado, olhava para o despertador e um flash veio
salvá-lo. Ele precisava despertar. Estava acordado por fora, mas dormia por
dentro. O tempo havia passado e ele se sentia um relógio velho. A vida, enfim,
estava se manifestando mais uma vez.
* * *
É
impressionante a quantidade de vezes que a vida se manifesta, incansável. E é
impressionante a quantidade de vezes que fingimos, cansados, não ver essas
manifestações. Ao contrário do que podemos pensar ou torcer, nenhum dos dois
tomou atitude alguma. Diante da percepção da inércia nada mais fizeram que
passar a noite tentando convencer a si próprios de que tudo não passava de uma
crise passageira. As imagens de suas juventudes vinham somente perturbar a já
estabelecida vida com ilusões completamente inviáveis. Nada daquilo era
absolutamente possível e não havia nenhum motivo real para a suposta
infelicidade. Ele pensava na sua mulher. Ela nas suas filhas. Ele enumerava as
qualidades dela. Ela ficava feliz de ver as meninas. Ele tinha um bom emprego.
Ela tinha tudo. Ele constituíra uma família. Ela tinha um marido maravilhoso.
Ambos tinham saúde.
Pensando
assim, concluíram que, na verdade, nada lhes faltava. Isso significava que eram
felizes e que todo aquele movimento havia sido apenas mais um flash que teimava
em envolver-lhes a vida com poesia. Ambos pensaram que o passado é sempre
poético e que por si só já garante à vida um pouco de romantismo. Então, foram
dormir. O dia seguinte iria ser cheio de afazeres e era necessário ser prático
àquela hora da madrugada. Antes de fecharem os olhos, ambos disseram em
silêncio, como se a vida ainda pudesse insistir: “Estou ficando velho...”
No dia
seguinte estava tudo realmente normal. Ele encontrou com vários amigos e
reparou que todos tinham uma placidez nos olhos, característica da inevitável
passagem do tempo. Então, tranquilizou-se. Era assim mesmo. Ela também
convenceu-se rapidamente. Suas filhas encheram-na de beijos pela manhã e ela não
teve como pensar que a vida pudesse estar errada. Encontrou nos rostos das suas
amigas um meio sorriso que também chamou de inevitável passagem do tempo. Ela
sentiu-se uma pessoa comum e isso confortou-a.
E assim passaram-se
dias. Meses. Anos. Séculos, diria. Passaram-se, na verdade, três mil Marias até
que um novo tremor viesse abalar o sedimento da lucidez. Ele já era avô. Ela já
era viúva. Na sala de jantar dele aumentava a quantidade de porta-retratos onde
ele era a figura mais antiga. Ela passava os dias entre as casas das Marias,
sempre preocupada em não incomodar o futuro que se abria para as antigas
meninas, agora mulheres casadas. Tudo o que lembravam da vida tinha virado
histórias onde muitas vezes nem eles próprios tinham certeza do que tinha
realmente acontecido. Ele não precisava mais pôr o relógio para despertar.
Estava aposentado. Ela não olhava mais para o céu. Enxergava muito mal e quase
não conseguia mais distinguir as estrelas. Ele olhava as crianças correndo no
almoço de domingo e sentia-se a própria máquina de fotografar o tempo. Só que
não se sentia feliz quando, à noite, desligava o antigo despertador. Tinha uma
estranha memória de uma felicidade que sentira ao apertar o botão ue cancelava
a realidade. E não era o que acontecia agora. Pela primeira vez em tantos anos
estava livre pra descansar e sentia que a única coisa que precisava era de
movimento. Por dentro. Ele descobrira que ainda havia tempo.
* * *
Graças à
vida, alguém sempre se ilumina. Dessa vez foi ele. O ócio, ao contrário do que
podia parecer foi exatamente proveitoso. Pela primeira vez ele ficou longas
horas em silêncio. E
descobriu que no fundo de sua alma tremia ainda uma enorme vontade de viver.
Não sei como, acho que através da lista telefônica, ele conseguiu chegar ao
número de uma das três Marias. Acho que com a vontade que ele estava esse
número poderia até ter caído do céu. O fato é que, ele ligou e descobriu que
ela estava lá. Só que ele não havia recebido uma boa notícia. Maria havia lhe
dito que a mãe estava muito doente e que por isso não podia ir ao telefone. Ela
estava com um problema no coração onde as batidas cardíacas descompassavam.
Havia perdido o ritmo da vida.
Ele não
acreditou no que ouvira. Pela primeira vez depois de tantos anos sentia o seu
corpo todo tremer desesperadamente. Precisava vê-la e isso era uma ordem.
Despediu-se
da mulher, da filha e das crianças dizendo que havia se inscrito numa excursão
que fazia programas para a terceira idade. Como era notório que ele estava
muito entediado, todos concordaram prontamente com o aproveitamento dessas
férias prolongadas.
E assim
ele se foi. Estranhamente ele sentia como se toda a sua ida tivesse sido apenas
um intervalo entre a despedida e o próximo encontro. Parecia que todos aqueles
anos não tinham passado e que havia sido ontem que ela entrara no avião. Ele
nunca tinha sido invadido por tantos flashes ao mesmo tempo e passado e
presente fundiam-se agora no milagre do movimento. Ele estava indo e só isso era
importante.
Chegou à
porta do edifício. “Será que ainda havia tempo?”, pensava ele em silêncio com o
pavor de alguma outra possibilidade. Tocou a campainha. Maria atendeu.
Perguntou quem era e ele disse ser um amigo que vinha de muito longe
especialmente para vê-la. Pediu alguns minutos que fossem, suficientes para um
breve encontro sem palavras. Maria atendeu. Conduziu-o até a porta do quarto e
falou ao ouvido da mãe que tinha um amigo que queria vê-la, que preferiu não
dizer o nome. Ela, então, pediu que o fizesse entrar e que a deixasse sozinha
com ele.
Os
instantes que se seguiram a esse encontro são quase impossíveis de serem
contados. Ela permaneceu de olhos fechados. Ele ficou imóvel ao lado da porta
por alguns segundos. Não muitos. Aproximou-se da cama e ela, estendendo uma das
mãos, acariciou-lhe a cabeça agora branca. Sua mão tremia e ele, não
resistindo, entregou-lhe o corpo num abraço onde pôde ouvir a voz dela, também
trêmula, dizer: “Eu sabia que você viria. Agora você já pode ir.” Só que agora
não era mais possível desgrudar daquela outra vida. Estavam de olhos fechados.
Ela sentia a orelha dele. Ele sentia os cabelos dela. Ela sentia a unha dele.
Ele a coxa dela. Ela o cheiro dele. Ele a carne dela. Estranho como a única
coisa que os fazia sentir que o tempo havia passado era a pele que as trêmulas
mãos sentiam ressecadas, talvez por terem engolido tantas lágrimas. O coração
dela, diante de tudo isso, temia não resistir a tantos tremores. Sentia-se mais
vivo do que nunca e isso fazia com que não soubesse o que estava realmente
acontecendo. Um dos dois perguntou: “O que você está pensando?”. E o outro
respondeu: “Não penso, logo existo”. Pela primeira vez perceberam que para
existir não era preciso pensar. Que talvez, devessem não ter pensado a vida
inteira. Ela, então, abriu os olhos e pôde vê-lo, finalmente. No fundo de suas
almas, ambos puderam ler que o tempo com sua marcha esmagadora havia
inevitavelmente passado. Mas, nenhum dos dois tocou no assunto. Os tremores
espalhavam-se violentamente pelos corpos daqueles dois seres que se encontravam
ali abraçados e não era possível fazer mais nada. Ela, então, sentiu um tremor
mais forte e, fechando os olhos, sorriu. Ele lembrou-se de como ela era bonita
quando, entrelaçada às suas pernas, fechava os olhos e , tremendo, sorria de
prazer. E, em verdade, era isso o que acontecia. Apertaram ainda mais o abraço
pois sentiam que um terremoto estava para acontecer. Então, como garantia, ela
disse-lhe: “Oito e meia no lugar de sempre?” Ao que ele respondeu: “Oito e meia
no lugar de sempre.”
A partir
daí, uma constelação abriu-se para os dois. Numa grande explosão, deu-se o mudo
tremor e uma avalanche de estrelas inundou aquele silêncio. Um silêncio mútuo
que, desta vez, estabelecia uma futura vida em paz. Sem nunca mais
precisar pôr o relógio para acordar.
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