A pergunta



Posta restante, anúncio no Jornal Aktuell, 2000.
Quando eu tive que deixar não apenas Berlim, mas também a Alemanha, estava noiva. Eu naturalmente não tinha ainda endereço no Brasil e por isso combinei com meu noivo que ele me enviaria uma carta ao Correio Central local em posta-restante. O que eu não sabia é que não havia algo assim aqui - até o dia de hoje. Devido a essa circunstância nos perdemos de vista. Eu gostaria de saber o que aconteceu com Bernd Biermann. Ele teria 87 anos. Naquele época ele provavelmente imigrou para Itália. 
Käthe B.Ellinger, nascida Juliusburger Rua Marquês de São Vicente
67 Bl. 2 Ap 602 
Rio de Janeiro 22451-041
Brasil


Faz 13 anos deste anúncio. E 76 do desencontro. Nesse tempo, Kathe me pediu algumas vezes para descobrir o que aconteceu com Bernd. Pediu também a amigas, uma outra neta e calculo que outros conhecidos pelo caminho. Ano passado minha avó morreu, sem nunca ter recebido uma resposta.

O texto que segue é um convite aberto para usar a arte como resposta a este anúncio. Um convite para você criar com qualquer linguagem uma possibilidade para a dúvida – o que aconteceu com Bernd Bierman?

As respostas em texto, foto, vídeo, música, dobradura, escultura, pintura... serão reunidas para uma exposição virtual e uma exposição em local a ser identificado. As respostas podem ser enviadas ao endereço que consta no anúncio acima.

O fim.

Faz pouco mais de um ano, Kathe levantava da maca da sala de emergência do mesmo hospital onde 63 anos antes havia dado a luz a sua única filha. Queria explicações dos médicos:

-       Que tipo de brincadeira é essa?! Eu quero ir para casa. Podem parar com isso e me tirar já daqui!! Estão entendendo?!

Ela falava como se estivesse em uma pegadinha de televisão; como se alguém tivesse armado que aquele era o fim da vida, mas tivesse esquecido de consultar se ela ainda tinha coisas por fazer. Seus 99 anos e 27 quilos contrastavam com o vigor de sua reivindicação. Ela não estava cansada de viver. E mais do que isso, não queria morrer.

Foram cinco noites até que Kathe saísse do hospital. Levamos minha avó para o cemitério judaico. Sentíamos saudade, mas também tranquilidade. Acho que é o que gente sonha para o enterro nosso ou de qualquer um – que haja tranquilidade com o fim. E era isso. Para mim, naquela hora, ela tinha vivido tudo. Fugiu da guerra, se tornou nacional de outro país, casou, teve uma filha, netas e bisnetos, exerceu a medicina e explorou o mundo. Não faltava nada na minha lista, e eu dava graças a ela.

Mas algumas semanas depois lembrei da reivindicação no hospital. Na verdade, ainda faltava alguma coisa. A lembrança veio de repente, como uma ficha que cai, quando encontrei esse anúncio. Me dei conta de que nunca tínhamos achado uma resposta para que ela pudesse viver uma coisa que faltava - o reencontro com Bernd Bierman.  

A história.

A primeira vez que ouvi sobre Bernd foi em 2010. Kathe chegou com um pedacinho de papel e duas palavras escritas a lápis – Bernd Bierman. Me entregou com um pedido de ajuda para procurar na internet pelo seu noivo alemão. Ela falava com os olhos ansiosos e foram eles que me confessaram - ali havia amor. 

Bernd era um rapaz culto, judeu, de boa família e muitos recursos. Estudante, assim como ela. Deveria ser pintoso; minha avó era. Ela tinha cabelos curtos e vorazes, olhos azuis celestes e andar elegante. Ele, eu não sei.

Em 1937 estavam noivos. Ela iria cursar medicina, os dois se casariam e seriam felizes e seguros até o fim.

Foi quando veio o antisemitismo de Hitler. De repente os judeus não podiam mais estudar medicina, só enfermagem. De repente, o pai de Kathe percebeu que era hora de fugir. Inventou um noivo brasileiro para Kathe e conseguiu autorização para que embarcasse para o Brasil toda a família. Levaram alguns baús, mas deixaram para trás lugares, cheiros, pessoas e a perspectiva de viver a vida sonhada. Era a trama tomando outro curso.

Kathe e Bernd se separariam temporariamente, era o combinado. Bernd enviaria uma carta para o correio central do Brasil indicando onde estava e Kathe responderia com seu endereço. Mas, como você já sabe, não havia correio central no Brasil. E eles se perderam.

Eu não encontrei informações sobre Bernd na internet; até onde sei, as outras pessoas para quem Kathe fez o mesmo pedido também não. A última vez que Kathe soube de Bernd foi com as flores que recebeu dele no navio, antes que partira para o Brasil.

Até hoje busco Bernd Bierman (nascido em1913, Alemanha) no Google. Busco com a angústia de um destino que se desconheceu. Não era falta de vontade de saber do outro, era desconhecimento de onde buscar. Podem ter estado alguma vez na mesma cidade sem saber? Podem ter alimentado uma esperança no acaso? Acreditado que na hora certa a informação chegaria? Podem ter servido um ao outro como a ilusão que impulsiona para frente? Ou de repente se esqueceram por anos a fio? Ou ainda, será que davam graças ao desencontro, porque havia permitido outros amores e um destino real?

As vidas se foram, mas o amor de alguma forma persistiu, inventado no meu imaginário e talvez agora no seu.

Até hoje não encontrei nem um indício de quem foi ou o que aconteceu com Bernd Bierman. Pensei em começar uma investigação, mas, para ser sincera, não importa o que aconteceu de fato. Mais belo e raro é um final assim, grávido de todas as possibilidades.

Kathe tinha uma teoria. Dizia que uma vez viu uma marca de vinhos italianos com o nome Bierman. Deve ter ido para Itália e lá ficou.

Eu ainda não criei a minha versão. Pretendo fazê-la. Mas gostaria que ela fosse uma entre muitas outras possíveis. Daí o convite a criar, com a escrita, a imagem, o som ou o silêncio: o que foi de Bernd Bierman depois de enviar o buquê de flores ao navio de Kathe?

Para você, deixo O reencontro.

1 comment:

  1. Dear Paula, please contact me at aslan.biermann@gmail.com I would like to share something important with you.

    Best,

    Aslan

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